Máscaras e venenos em A Morte de Ivan Ilitch de Tolstói

Pedro Bomfim
8 min readFeb 2, 2021
Lev Tolstói encostado numa poltrona escura com um maço de papel na sua frente e uma caneta em sua mão esquerda.

Bem, cá estou novamente com uma resenha sobre literatura russa, também de 2019, também entregue como avaliação para a disciplina Introdução à Literatura Russa II. Faz quase um ano que o professor Homero faleceu e, nossa, quantas coisas aconteceram nesse tempo.

De todo modo, não vou me alongar novamente, até porque acabo deixando esses fragmentos de memória mais para mim, dado que perdi o arquivo original, do que para outras pessoas, que, salvo raras exceções, como família e afins, não vão ler nada disso. Ah, preciso enfeitar o feed do Instagram também, claro, porque é disso que vive o jovem adulto na era pós moderna e, bem, sou um jovem adulto vivendo na era pós moderna.

O fascínio pela morte esteve presente, de um modo ou de outro, em todas as sociedades humanas até hoje. Essa curiosidade intensa é, muito provavelmente, fruto da necessidade inerte aos homens de alcançar o conhecimento; e que mistério melhor para suscitar esse anseio que aquele responsável por dar fim permanente à existência material de alguém? A literatura, no que lhe concerne, ainda que não detenha respostas científicas — ao contrário do que afirmou Zola em seu ‘romance experimental’ —, pode assumir um papel catártico conforme tenta destrinchar os segredos não só da vida, mas também da morte.

Sobre esses segredos, convém citar o escritor russo Lev Tolstói (1828–1910), autor de dois pilares monumentais da literatura mundial — Anna Kariênina e Guerra e Paz. A temática da morte surge em alguns de seus livros ora como elemento central, ora como elemento secundário, mas parece sempre rondar pelo ambiente em que suas personagens estão inseridas, como, por exemplo, nos ideais suicidas tanto de Conde Vronsky quanto de Anna, já ao fim de Anna Kariênina, ou na visita de Liévin a seu irmão, pouco antes do falecimento deste, no mesmo romance.

Entretanto, é em sua novela A Morte de Ivan Ilitch que essa temática fúnebre se alastra, vide o próprio nome da obra. O leitor acompanha o juiz Ivan Ilitch no que pode ser descrito como sua derrocada moral, física e psicológica. A novela constrói, especialmente a partir do capítulo VI, uma tomada de consciência por parte do magistrado cujo ponto de partida é, sem rodeios, a dor física; dela surgem questionamentos acerca do que foi, de fato, sua vida e o porquê dele precisar sofrer do jeito que está sofrendo.

Ivan Ilitch, já acamado por consequência de uma doença não especificada, não demora a perceber que se transformou num estorvo para os outros e até para si mesmo — o que, ao contrário do que se espera, não lhe gera qualquer sentimento de compaixão, ao menos não até momentos antes de sua morte: “[…] se não demoraria muito a desocupar finalmente o seu lugar, a livrar os vivos da opressão causada pela sua presença, e a livrar-se ele mesmo dos seus sofrimentos.”. Essa falta de piedade advém, inclusive, da insensibilidade pela qual é tratado por quase todos ao seu redor, como demonstra o narrador: “[…] o que mais atormentava Ivan Ilitch era o fato de que ninguém se compadecesse dele da maneira como ele queria […]”.

Guerássim e seu filho mais novo, no entanto, constituem exceções à regra. O primeiro parece conter uma plenitude simples nunca alcançada por Ivan, enquanto o segundo não passa de uma criança preocupada com o pai. O modo de vida simples e honesto, por assim dizer, que Ivan encontra em Guerássim contrasta de maneira direta com a vida do juiz, marcada por mentiras de todas as espécies, seja dele para com os outros, dos outros para com ele ou dele para ele mesmo. Mediante a inevitabilidade da morte e por meio de reflexões constantes como essa, Ivan percebe que, junto aos outros de seu círculo social, viveu uma grande e trabalhosa mentira — esta responsável por envenená-lo de tal modo que o deixou cego e casou, em última instância, seu profundo desespero perante a morte.

É interessante notar o efeito que a quebra dessa ignorância gerou no doente: sua postura, até então de tolerância com a família, transformou-se num desgosto tão impetuoso quanto o sabor onipresente da enfermidade. Em parte, porque “Esta mentira ao seu redor e nele mesmo envenenou mais que tudo os últimos dias da vida de Ivan Ilitch” e também porque o juiz aprendeu, como seus colegas aprenderão, que o ser humano não é imortal. Mais do que isso, que, independente de individualidades e caráter, todos estão fadados à morte.

O exemplo do silogismo que ele aprendera na lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo: mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais […]

O então juiz de formação recusa a morte como se fosse dono da realidade, transformando a retrospectiva de sua vida, justa e boa aos seus olhos, numa justificativa rasa. Cabe mencionar a essa altura a forte presença do autor Tolstói na narrativa: o escritor russo se tornou uma espécie de recluso na metade da década de 70 do século retrasado e parece ter usado esse tempo para ponderar sobre várias questões, em especial sobre a religião e a morte — não é de se admirar, portanto, que, pouco depois, o autor foi também atormentado por pensamentos suicidas.

Paulo Rónai confirma o que já se supunha, que “a morte para ele [Tolstói] era uma obsessão”. Não é de se espantar, também, que A Morte de Ivan Ilitch, criada num período já maduro da literatura de Tolstói, descreva tão minuciosamente e com muito tato os últimos suspiros de vida de um moribundo. Ainda que não se trate de uma obra ensaística ou autobiográfica, na mesma medida de Uma Confissão, é razoável considerar um paralelo muito forte entre Ivan e o próprio autor — hipótese corroborada pela presença do autor em outra personagem marcante de sua literatura, Liévin, de Anna Kariênina, este que parece retratar o início das contemplações filosóficas do aristocrata russo.

Como exemplo concreto dessa relação entre Tolstói e suas personagens, cabe destacar um comentário breve de Rubens Figueiredo no prefácio à Anna Kariênina. O excerto é responsável por sumarizar de maneira ímpar a conexão literária entre o autor e sua obra, ainda mais quando, dois séculos mais tarde, percebemos que a situação de Liévin construía um prelúdio para a situação do próprio Tolstói:

Nas passagens finais de Anna Kariênina, Liévin, seu protagonista, que faz a figura de um buscador da verdade, chega à desoladora conclusão de nada haver solucionado. Para enfrentar o futuro inescapável, pois até o suicídio lhe é vedado, ele tem por único esteio e consolo a fé mais rudimentar de um mujique. (2005, p. 7)

À semelhança do que fizeram Tolstói na realidade e Liévin na ficção — encontraram ambos um novo significado para a fé —, Ivan Ilitch, momentos antes de sua despedida do mundo material, reconcilia-se com sua dor e com seu medo da morte, sustentados já pela mencionada ideia de que sua vida fora boa. “Esta justificação da sua vida é que se agarrava a ele, não o deixava prosseguir e atormentava-o mais que tudo.”. No momento em que sua máscara caiu, percebeu que sua trajetória foi, na verdade, supérflua, indistinta e frívola. Só então todo o pavor desapareceu: “Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia. Em lugar da morte, havia luz.”.

Do mesmo modo que a mentira implícita se apossa de quase todos os conhecidos do juiz em seu período acamado, há essa espécie de acordo social tácito que evidencia, com bastante clareza, a presença da mesma máscara que Ivan outrora vestiu. No início da narrativa, por exemplo, os colegas de trabalho do defunto continuam sem se apiedar de sua morte e pensam, assim que ouvem as notícias de seu falecimento, sobre quais cargos ficarão vagos. “De modo que, ao ouvirem a notícia da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de cada um dos que estavam reunidos no gabinete teve por objeto a influência que essa morte poderia ter sobre as transferências ou promoções […]”.

A máscara da esposa ávida por dinheiro, como uma versão russa de Rubião de Quincas Borba, é explorada ao longo do adoecimento de Ivan — vemos que ela só busca manter as aparências, junto a ele, aos membros da alta sociedade que frequentam sua casa. Nesse sentido, faz-se importante relatar, também, que um dos únicos passatempos do protagonista é a mudança recorrente da disposição dos móveis na casa. Ora, que tipo de hobby é esse que serve somente para reforçar a característica superficial da sua vida? Como versa o narrador, “Na realidade, havia ali o mesmo que há em casa de todas as pessoas não muito ricas, mas que desejam parecê-lo e por isto apenas se parecem entre si […]”. Justamente desse desejo de ascensão tolo é que surge sua agonia, na forma de um acidente doméstico ordinário.

Todos esses acontecimentos ordinários evidenciam o fato do veneno mencionado por Ivan ao fim da vida ter estado, com efeito, sempre presente. A diferença é que, às portas da morte, o juiz compreendeu a eficácia deste e, por conseguinte, discerniu aquilo que seria uma vida envenenada, como a dele, daquilo que seria uma vida natural, como a de Guerássim. A morte, portanto, não chegou; ela sempre caminhou rente ao protagonista, ao menos no âmbito moral.

Por último, é possível traçar algumas relações com a morte de Bazárov, protagonista de Pais e Filhos, de Turguêniev. A morte do rapaz niilista foi, em todos os sentidos, simples e descuidada — o contrário absoluto da morte de Ivan, que se arrastou pela novela inteira. Mas ambos se parecem num aspecto: acreditavam serem muito mais importantes do que de fato eram. Julgaram que as amarras da sociedade não os atingiria e que estavam acima de tudo e todos, até que, no momento derradeiro, provaram que eram só mais duas pessoas comuns. Bazárov foi velado pelos pais e pela senhora Odíntsova da mesma forma como Ivan Ilitch foi velado por Guerássim e seu pequeno filho — o resto das pessoas, no primeiro caso, nem sequer se lembrava do ardoroso niilista e, no segundo, só se importava com a própria imagem.

O falecimento de Bazárov significa, ainda, o retorno da sua essência original e o consequente embate desta com sua visão niilista, gerando, na mente do jovem médico, uma contradição devastadora — contradição esta que ele aceitou nos últimos minutos de vida e pôde, finalmente, tirar a máscara. Ivan Ilitch, no que lhe concerne, sofreu semelhante problema ao precisar lidar com a contradição de sua própria vida. A diferença reside no prolongamento dessa dor mortífera que, para Ivan, parece muito mais arrastada e impiedosa, ainda mais ao considerar que, mesmo após sua morte, as pessoas que lhe eram próximas estavam mais preocupadas consigo mesmas.

De todo modo, o espectro da morte está sempre conosco, sejamos leitores, autores ou personagens. E, se há alguma certeza científica plena, é a de que não podemos escapar. Não importa o quanto tentemos ou nos achemos diferentes, a morte chega para todos do mesmo jeito — por caminhos distintos, é verdade, e às vezes por meio de percursos sinuosos e mais lentos, como o veneno de uma cobra ao percorrer o corpo humano, mas sempre chega, como demonstra muito bem Tolstói.

Referências bibliográficas

TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. São Paulo: Editora 34, 2009. Tradução de Boris Schnaiderman.

TOLSTÓI, Lev. Anna Kariênina. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2005. Tradução de Rubens Figueiredo.

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Pedro Bomfim

Morto por dentro, nada mais do que um fantasma de comentários pungentes.