Infeliz Cidade

Pedro Bomfim
4 min readJan 22, 2022

Era um dia como qualquer outro quando ela entrou no apertado café perto da casa. Paredes de mármore cinzento e polido refletiam as marcas no balcão igualmente polido, causadas por uma legião de copos fumegantes e pratos ardentes. Um pensamento astuto lhe passou pela cabeça, mas, como sempre, não lhe deu atenção e o provérbio em potencial se perdeu para sempre nas bordas da imaginação.

O que pincelou seus olhos, entretanto, foi uma manchete exagerada na capa de alguma dessas revistas esquecidas que nem mesmo as senhoras mais desocupadas leem. Ao pegar aquela amálgama de pedaços de papel rotos, o barista, recém-contratado, levantou uma sobrancelha inquisidora, como se ninguém tocasse naquilo há décadas. Um olhar mais atento revelaria, também, que sua boca fazia algum movimento manhoso, fruto, provavelmente, de um sorriso maquinal, mas era difícil dizer com certeza por causa da máscara que tapava seu rosto.

A manchete fazia referência a uma reportagem curiosa, chamada Infeliz Cidade — um título bastante propício aos jornalistas de plantão que, como sempre, gostavam de adicionar uma pitada de humor clichê aos textos para se sentirem superiores aos leitores. Mesmo com esse preconceito inicial, ela folheou até a página indicada no índice da revista e encontrou a tal reportagem, cujo nome do repórter estava tão apagado que mal se distinguiam as letras. Do mesmo modo, alguns parágrafos estavam ilegíveis, e a foto responsável por ilustrar a matéria não muito nítida. Começou a ler.

Não esboçavam sorrisos e não expressavam alegrias, a menos que fosse para enganar alguém. Ninguém queria ser feliz, ainda que todos soubessem que esse sentimento era alcançável. A apatia coletiva não foi causada por governos, ditadores ou conglomerados, nem ideologias, filosofias ou doutrinas. Esse sentimento simplesmente apareceu, por livre e espontânea vontade de todos. Ademais, a hierarquia quase não existia. Quem queria ser feliz ou foi embora para outras terras ou encontrou a salvação por meio de outras maneiras menos convenientes, mas que, no atual contexto, não eram tão inconvenientes assim. Afinal, ninguém se importava nem com os que foram, nem com os que ainda estão lá.

Ao contrário do que se pode imaginar a cidade não ficou cinzenta ou teve sua atmosfera transformada, ela continuou radiante como sempre foi. As pessoas continuavam suas atividades rotineiras, andando a esmo pelas ruas. Alimentavam os animais, plantavam, liam jornais e trabalhavam. No entanto, eram só cascas vazias reproduzindo o que sempre haviam feito, quase como androides programados.

Mas essa definição ainda é muito vaga para delinear aquele lugar sombrio. Androides cumpririam suas tarefas e aguardariam pelas próximas, o que era comum. Ali não existia a palavra ‘comum’, ao menos não na acepção que costumamos usar. A estranheza gerada pela falta de sensibilidade e interesse ultrapassou a compreensão humana e o próprio conceito de estar vivo. As pessoas, por fora, pareciam normais como quaisquer outras, mas, por dentro, eram ‘coisas’ sem nome, que viviam por um propósito desconhecido. Não é certo dizer que ainda podiam ser chamadas pessoas.

Uma longa avenida se estendia de uma extremidade a outra, cobrindo toda a distância necessária para entrar ou sair da cidade. Carvalhos imponentes cresciam do chão e davam as folhas mais bonitas que já existiram. O verde era tão majestoso que os pássaros mergulhavam das mais insanas altitudes para ter um pequeno deslumbre efêmero. Além das folhas, os galhos das árvores pareciam se entrelaçar, num emaranhado esdrúxulo e simpático.

Dos galhos mais grossos pendiam corpos enforcados, provavelmente daqueles que buscaram pela saída que já fora inconveniente um dia e se tornara tão convencional naquele paraíso invertido. Vendo-os de longe, salvação talvez não fosse a palavra certa para expressar o que todos os cadáveres um dia buscaram, mas, por outro lado, talvez não existissem palavras certas. Nada era certo nos arredores, que eram circundados por uma sensação obscura e constante, mesmo com o raiar do sol aconchegante.

O mal-estar daqueles ainda sãos era atormentador. No começo, acharam que se adaptariam e sobreviveriam aos murmúrios sombrios vindos de suas próprias cabeças. Progressivamente, os murmúrios viravam ilusões. A esquizofrenia aumentou, a insanidade tomou conta, os médicos fugiram depois de um tempo. Naquela cidade inóspita ou você entregava sua humanidade, ou morria numa tentativa desesperada de mantê-la.

Nessa barbárie psicológica, as ‘coisas’ continuavam seus afazeres. Sempre continuaram e sempre continuarão. Mas elas sabem que nem todos são iguais. Sabem que ainda existem pessoas de verdade, tentando viver. Sabem da felicidade que alguns almejam. Querem exterminá-la por alguma razão desconhecida. Destroçá-la em pedacinhos, enforcá-la como os mortos da cidade, queimá-la, sufocar os que a perseguem. O que são elas? Elas estão em outros lugares? Ninguém quis me dizer. Mas todos com quem conversei reiteraram só uma coisa.

Não acreditou quando terminou de ler e não encontrou o final da narrativa. Como alguém teria coragem de deixar uma revista dessas em cima da mesa, com uma reportagem sensacionalista e cheia de firulas, por mais bem escrita que fosse, cujo final estava faltando? Era revoltante, para dizer o mínimo. Irada como sempre fora, chamou o barista com olhos de ônix e lhe comunicou seu desgosto — o fato de ter perguntado se ele sabia quem escrevera ou onde encontrar um exemplar em melhor estado eram meras formalidades. Solene, com olhos fixos e intragáveis, ele respondeu.

— Elas sabem da sua felicidade.

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Pedro Bomfim

Morto por dentro, nada mais do que um fantasma de comentários pungentes.