Especial

Pedro Bomfim
5 min readDec 23, 2020

Escrevi este conto um pouco antes da pandemia destruir as esperanças de um natal feliz ou de um ano novo festivo. Não que eu, pessoalmente, tenha essas ilusões em anos normais, mas sei que são datas comemorativas importantes. De todo modo, escrevi-o para minha sobrinha, Fernanda.

Tive a sorte de, com ele, conseguir participar da décima quinta edição da revista Originais Reprovados, na qual o conto foi publicado na versão online. Você pode ler o conto lá no Issuu, começando na página 75, ou aqui mesmo. Independente da escolha, não deixe de ler a revista, há contos muito bons ali, principalmente da minha amiga e senpai Andreza Silva, uma verdadeira inspiração aos estudantes de japonês.

Sempre que pousava perto de uma das humanas que andavam pela região, a pequena joaninha sentia a ansiedade de estar próxima de uma criatura tão grande. Bastava um simples peteleco ou um movimento desengonçado e a pequena seria arremessada muitos metros à frente, podendo até se ferir no processo. Mesmo assim, sabia que tinha que tentar.

A humana tinha sob seus cuidados outra humana, menor e mais sorridente, mas ainda grande perante os olhos da joaninha. Tais olhos, simples mas detalhistas, viram a pequena menina crescer um pouco ao longo dos meses; logo ficaria próxima do tamanho de sua guardiã. Mas, ao contrário das duas, a joaninha não ficaria maior. Esse pensamento, apesar de tê-la entristecido no início, se aconchegou em sua mente, e a pequena aceitou-o como parte natural da vida.

De qualquer maneira, a joaninha tentou se aproximar por uma razão bastante específica, cujo gatilho foi certo encontro com outra da mesma espécie, acontecido alguns dias antes.

— Você tem nome? — questionou a joaninha visitante, inspecionando a outra, que continuou calada e com os olhos fixos na carapaça vermelha e salpicada de pontinhos pretos da colega inesperada. — Acho que você não gosta muito de falar, né? Não me surpreende muito, tendo essa carapaça esquisita. Capaz até de ser muda!

Com esse tom misturado de escárnio e desdém, a visitante terminou de falar e voou para longe. Um tanto incomodada, a anfitriã, cuja residência se encontrava ao lado de uma casa humana, decidiu ir até a janela mais próxima e averiguar a veracidade do comentário maldoso, afinal, já havia visto muitas joaninhas e, apesar de alguns olhares estranhos, não havia mantido contato tão próximo com uma.

Aproveitando o final de uma tarde ensolarada, ela se pôs em frente à janela e se deparou com sua própria imagem. Nunca havia prestado muita atenção em si mesma até aquele momento — poucas foram suas interações com outros insetos ou mesmo outros seres vivos, preferindo limitar-se a observá-los. E, naturalmente, a imagem que alguém constrói de si mesmo é moldada, em parte, de acordo com a imagem que os outros constroem.

A pequena percebeu que sua carapaça era inteira vermelha, sem nenhuma das pintinhas pretas que outras de sua espécie possuíam, e que brilhava bastante. “Ora, mas qual o problema?”, pensou. Era tão joaninha quanto uma joaninha pudesse ser, dizia a si mesma. Além disso, por que daria ouvidos aos comentários maldosos de uma qualquer?

Foi somente quando viu através da janela uma parede cheia de pinturas de joaninhas que um sentimento sutil de tristeza despontou em seu íntimo. Todas com carapaças vermelhas e pintinhas pretas, todas semelhantes, todas irmãs. Como numa epifania, os olhares estranhos que já recebeu fizeram sentido.

Seria ela a única que não carregava os pontinhos pretos nas costas? Se sim, por quê? Se não, onde estariam as outras e por qual motivo nunca as tinha visto? O que ela faria? Tinha que fazer alguma coisa? Tantas perguntas surgiam ao mesmo tempo em sua mente que a pequena se sentiu desorientada, como num dia de forte ventania.

“Tenho uma ideia”, refletiu logo que a noite tomou o lugar do dia. E se as suas manchas pretas estivessem perdidas, do mesmo jeito que a pequena humana sempre perdia as coisas pela casa? Era uma possibilidade, mas ela não fazia a menor ideia de onde suas pintinhas poderiam estar. Não se lembrava de quando era mais jovem e pouco pensava sobre seus parentes que haviam partido há muito. Ademais, como procuraria por algo tão pequeno?

Um tanto sagaz, a joaninha, sempre observadora, sabia que a humana maior costumava ajudar a pequena a encontrar seus pertences perdidos. Talvez, então, pudesse ajudá-la a encontrar aquilo que lhe fazia falta… O que nos leva ao presente mais uma vez, no qual a corajosa aventureira busca por um pedaço de si mesma.

Alguns dias se passaram até a joaninha encontrar uma oportunidade de se aproximar. Assim que viu a janela, outrora usada como espelho, aberta, planou em direção ao quarto. Tal qual uma minúscula pluma avermelhada, aterrissou com sutileza e viu a menina sentada numa cadeira cinzenta, desenhando em cima da mesa, no papel encapado. Ponderou por alguns minutos e decidiu se aproximar um pouco mais, pousando na extremidade esquerda da mesa.

Demorou um pouco para que a menina percebesse a simpática observadora que ali estava. Quando enfim notou a joaninha, seus olhos escuros já refletiam o ponto vermelho cintilante no meio daquela massa cinzenta que era a superfície da escrivaninha. Interessada na pequena criatura, a criança, esperta, sabia que não teria outra chance e começou a desenhá-la com muita suavidade, temendo espantá-la caso fizesse qualquer movimento brusco.

A joaninha, por sua vez, se perguntava o que a menina tanto escrevia e se sentia apreensiva por estar tão próxima de uma pessoa que poderia esmagá-la com tanta facilidade. Perguntou-se, ainda, se a menina estava julgando-a em silêncio por sua aparência diferenciada e, se sim, o que ela pensava a respeito.

Transcorreram mais alguns minutos até que a humana maior entrou no quarto e foi espiar o que a menina fazia. Olhando por cima do ombro, percebeu que ela desenhava uma joaninha totalmente vermelha, diferente de outras que já tinha desenhado antes.

— Fernanda, o que você tá desenhando? — questionou numa voz doce, estranhando a falta de pintinhas pretas nas costas.

— Uma joaninha ué! Igualzinha àquela que tá ali no fundo da mesa, viu? — e, com efeito, a mulher dirigiu o olhar para a ponta da mesa, onde ainda, aflita, repousava a pomposa joaninha. — Eu vi que ela pousou ali e achei ela bem bonita, diferente de todas as que eu já tinha visto. Ela brilha tanto!

— É, brilha mesmo. Acho que ela é bastante especial, né? Nunca tinha visto uma sem as pintinhas pretas. Ela é tão bonita.

“Especial e bonita”, pensou a joaninha. Será que ela precisava mesmo encontrar suas pintinhas pretas? Será que não poderia se sentir plena do jeito que era? Ora, claro que poderia.

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Pedro Bomfim

Morto por dentro, nada mais do que um fantasma de comentários pungentes.