A um compasso da realidade

Pedro Bomfim
9 min readMay 1, 2021

Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Os cliques do relógio são ensurdecedores de madrugada, quando até a maior das cidades precisa repousar. Ao menos era isso que diziam os grandes artistas, fossem eles músicos, escritores, pintores ou quaisquer outros. A grande realidade é que a noite é cheia de ruídos, mas, diferentemente do resto do dia, poucos estão acordados para percebê-los.

É o caso de Lúcio, que passou as últimas 380 noites ponderando sobre o estado do país. As ruas adquiriram, neste período, um aspecto aleatório bastante singular; às vezes estavam cheias, como se a realidade fosse a mesma, e noutras vezes pareciam abandonadas, infelizes sem o burburinho habitual. Mas a realidade ainda é a mesma, só a nossa que não, pensou.

— E mesmo assim parece que tem gente que não aceita isso. — murmurou, mais para si do que para os fantasmas da madrugada. Dentre eles, sua irmã mais velha e seu pai, levados pela doença que acometia o mundo. No começo, sentira raiva de quem andava despreocupado por aí; depois, teve raiva dos governantes incompetentes e despreparados; por fim, encontrara uma fagulha de consolo ao imaginar que outras pessoas estavam na mesma situação.

O rapaz não precisava ser um estudioso da teoria da relatividade para refletir sobre o tempo envolvido nesta suposta nova realidade. Para ele, que foi demitido de um bom emprego poucos meses depois de conseguir a vaga, os dias tombavam e se reerguiam com uma lentidão notável, quase como se a Terra agora estivesse em câmera lenta. Mais de uma vez, ele se perguntava se as pessoas de outros cantos do planeta também se sentiam assim; na verdade, questionava até se o seu vizinho estava inserido nesse marasmo existencial, ainda mais porque só havia ouvido alguns barulhos de conversa daquele outro apartamento há algumas semanas.

Por morar sozinho num apartamento na região do Ipiranga, em São Paulo, seu contato com o mundo exterior estava quase que inteiramente mediado pelas redes sociais. Vez ou outra precisava descer pelas escadas do prédio — o elevador estava em manutenção há meses — para buscar algo na portaria, momento em que trocava algumas palavras com o porteiro ou com o zelador. Apesar desse contato, sentia-se como um androide antigo, destituído de mecanismos avançados de fala e compreensão. Não estava nem mesmo no patamar de um replicante.

Mesmo ansiando por uma conversa acalentadora, Lúcio tentava manter todas as suas atividades no período da noite, buscando tão somente a companhia dos ruídos do ambiente. A opinião dos outros o assustava; não por ser diferente, mas por tornar irrelevante a morte ou o sofrimento de outrem, fosse ele psicológico ou físico. Era como se não existisse mais uma só realidade, mas várias, cada qual mais transtornada que a outra.

— Ou então tudo isso é uma realidade só, mas em pedaços. — disse, imaginando se algum espectro perdido o ouviria. Ele não tinha como saber — ninguém tinha, na verdade -, mas muitos o ouviam. Alguns conhecidos, outros não, mas ouviam, mesmo que fosse uma lamúria sufocada às pressas. Não era a mesma coisa que uma conversa ao vivo com outro ser humano, tampouco uma conexão virtual possibilitada pelo ciberespaço; no entanto, era um tipo de comunicação.

De qualquer maneira, a reflexão sobre as realidades lhe rendeu algumas horas de angústia noite adentro. Decidiu, assim, pedir um lanche da única lanchonete aberta àquela hora — cortesia do porteiro, que lhe confidenciara a existência numa das rápidas trocas de palavras. Ela operava naquele horário por causa das restrições de circulação ao longo do dia e, como o lugarejo era escondido numa das muitas vielas do bairro, dificilmente a fiscalização o veria antes que os olheiros a vissem.

Escolheu o de sempre e discou o número. Tique-taque. Tique-taque. Tique-taque. Era o som da chamada ou o ruído impiedoso do clique do relógio? Não conseguia mais diferenciar, nem mesmo quando a chamada não foi atendida. Tentou mais algumas vezes, todas em vão; não queria cozinhar àquela hora, talvez por causa de um medo irracional, daqueles herdados da infância, do barulho atrair alguma coisa indesejada. Já tenho fantasmas o suficiente, notou para si enquanto tamborilava os dedos pela superfície de madeira carcomida do batente da janela.

Viu com olhos desinteressados que a pequena cabine onde o porteiro passava os dias estava com a luz acesa, como sempre. Um dos pilares da realidade muito provavelmente era essa fonte luminosa sempiterna, que se repetia em frente aos milhares de prédios espalhados pela cidade. Não costumava ser uma luz forte, mas sim um leve lampejo, como se a linha de energia daquelas cabines estivesse em constante meia fase. Talvez por isso quem ocupava aquela função, principalmente de madrugada, costumava ser mais receptivo; vivendo com metade da voltagem, ou você se transformava num gerador próprio ou era engolido pelas sombras.

O problema, algo que Lúcio teria de enfrentar em breve, é que todas as luzes produzem suas sombras. Quando alguém não consegue conviver com a escuridão, está fadado a não se conhecer por completo e, como consequência disso, não possui as artimanhas necessárias para desenvolver, na mesma linha de raciocínio, um gerador próprio. Às vezes também acontecia de alguém aceitar as sombras, que logo se espalhavam como um vírus de computador, agressivas e famintas.

— Acho que eu tô precisando respirar um pouco. — deixando a imagem da cabine solitária, levantou pronto para enfrentar alguns lances de escada. Talvez encontrasse o porteiro, que não estava em seu posto; talvez desse de cara com o zelador, enquanto ele fazia alguma tarefa noturna; ou ainda esbarrasse em algum morador, voltando de qualquer evento proibido.

Ainda reflexivo, Lúcio passou pela sala e se dirigiu até a porta da frente. Era perceptível que a luz do corredor estava acesa — algo esquisito, considerando que era madrugada e dificilmente algum dos moradores do andar estaria se aventurando por ali àquela hora, até porque o rapaz não havia ouvido o característico som da porta pesada de metal que separava o corredor do acesso às escadas. Provavelmente algum vizinho desocupado como eu, imaginou.

Tique-taque. Tique-taque- Tique-taque. Ao se retirar do apartamento, viu que seu vizinho também estava encaixando a chave na maçaneta, mas os últimos compassos do relógio prenderam sua atenção até que a porta estivesse fechada. Uma pequena onda de ansiedade se apoderou do rapaz, que não via o homem há um tempo; o que deveria falar? Ficaria melhor em silêncio? Perguntaria algo?

— Noite. Tudo bem? — sua voz tremeu um pouco e saiu mais baixa do que esperava, mas o homem se virou em sua direção e deixou um sorriso tímido de boca fechada. Lúcio não lembrava o nome dele, mas sabia que ele morava no prédio há alguns anos. Nunca tiveram problemas, tampouco foram próximos. Algo nos olhos dele lembraram ao rapaz os ponteiros de um relógio qualquer, quase como um gato.

— Acho que sim. Ia fumar, mas acabou o cigarro e não tenho outro, então ia perguntar se o Valdo tinha um. — respondeu em tom firme o homem, que usava uma camisa lisa branca, calça social e até sapato, contraste nítido com Lúcio, que vestia um conjunto de moletom esfarrapado como pijama e chinelos havaiana. Mas convenhamos, roupa social às três da manhã não é algo muito comum. Ou é?

— Valdo? — não se lembrava de nenhum morador com esse nome.

— Josivaldo. O porteiro. Cara bacana, sempre me ajudou. — Lúcio não parecia surpreso quanto ao fato de não conhecer sequer o nome do porteiro, quanto mais seu apelido. Será que ele sabia esse nome antes de toda essa confusão apagar sua noção de tempo e tempestear a realidade? Não conseguia se lembrar. Talvez já tivesse até conversado com aquele homem garboso, mas também não se lembrava.

Ajudou com o quê, pensou Lúcio enquanto examinava a expressão de seu vizinho. O rosto grisalho não indicava nenhuma resposta para o questionamento mental do jovem, que decidiu descer de uma vez. Não estava muito inclinado a conversar àquele horário, muito provavelmente pelo mesmo receio quanto à cozinha e seus barulhos, mas seu interlocutor não parecia se importar.

— Sabe, desde que tudo isso começou, eu perdi várias pessoas. Faz tempo que não vejo ou falo com alguém, mesmo minha família, que me visitou pela última vez há alguns anos. Mesmo pra mim, que sempre fui mais na minha, é meio triste, sabe? Não ter ninguém, nem mesmo as plantas, pra conversar. — enquanto falava, o vizinho ajustou a gola da camisa, que estava abotoada até o topo. Seus olhos não pareciam muito tristes, mas eram intensos; provavelmente escondiam o transbordar de sentimentos poderosos.

— Mas… achei que tinha escutado gente conversando no seu apartamento há o que, 2 semanas no máximo? — Lúcio não soube o motivo da pergunta, bastava concordar e seguir seu caminho. Não era como se qualquer coisa daquelas fosse da sua conta, mas, de certo modo, sentiu bastante simpatia pelo homem grisalho. Tanto é que, ao invés de perguntar seu nome, decidiu acompanhar a história sem mais interrupções.

— Acho que foi algo da sua cabeça, ou então veio de outro vizinho. Ninguém aparece em casa há meses. De todo modo, por que apareceriam? Tem essa doença nova circulando por aí, tem gente que perdeu o emprego, tá todo mundo triste de um jeito ou de outro. E, claro, tem os loucos que acham que é tudo mentira, mas esses aí eu não quero em casa não.

— É, eu também perdi pessoas e tive que lidar com essa gente maluca. Parece que dói mais quando eles preferem a realidade deles a encarar o que é de fato verdade. — a conversa, mesmo que breve, já havia promovido certo grau de ressonância entre os dois interlocutores. — Bem, vou lá pra baixo respirar um pouco do ar fresco da madrugada, não esse oxigênio estático de apartamento, caso queira continuar.

— Você vê com o Valdo se ele tem um cigarro pra mim, por favor? Preciso tirar esses sapatos, eles me dão bolhas nos pés. — um tanto cabisbaixo, ele esperou Lúcio fechar a porta que dava acesso à escada para tirar os calçados que tanto lhe incomodavam, acenando para o colega enquanto ele desaparecia por entre a fresta.

O relógio do saguão do prédio já marcava quatro horas da manhã quando Lúcio abriu a porta com calma, ciente de que poderia acordar o porteiro que, muito possivelmente, estava dormitando. A luz da guarita estava acesa, mas dessa vez havia uma silhueta preta inclinada ali dentro criando uma desconfortável sensação de temor. Ah, para com isso, é só o porteiro, censurou Lúcio enquanto se aproximava a passos sorrateiros. Não era?

Quando sentiu uma mão em seu ombro, o jovem notou sua pressão baixar e uma intensa onda de adrenalina usar seu sangue como meio de transporte. Estava preparado para o pior quando uma voz rústica disse:

— Você é o cara que mora ali no sétimo, né? Chegou um pacote de alguém pra você. Acho que deve ser da sua mãe. — aquele era Valdo, o porteiro sempre simpático, ainda que um pouco intimidador. Mas não intimidador o suficiente para eriçar os pelos de Lúcio tal qual um gato, como ele estava agora.

— Ah é… valeu. Cê sabe se aquele restaurante que você me indicou tá fechado hoje? Liguei lá e ninguém atendeu. — perguntou tentando aliviar sua própria tensão.

— Claro que tá fechado, cara. Hoje é domingo, esqueceu?

— É? Poxa… Ah, meu vizinho perguntou se você tinha um cigarro também. — certo arrependimento se apossou do rapaz quando ele percebeu a careta do grande homem à sua frente.

— O do 720?

— Isso, ele mesmo. Cabelo grisalho, olhos profundos, sorriso meio tímido. — Lúcio morava no 722, logo ao lado.

— Você tá me zoando, né? — respondeu com um tom que estava entre jocoso e incrédulo. Quando Valdo percebeu que o garoto não havia entendido, prosseguiu com cautela. — Faz quanto tempo que você não sai? Esse cara morreu tem umas duas semanas. A família dele veio pegar umas coisas aí, foi a primeira vez que eu vi eles. Ele nunca recebia visita, pelo menos não no meu turno.

— Ele tava doente? — questionou Lúcio, que, a essa altura, já não duvidava de mais nada, inclusive da sua própria sanidade.

— Bom, acho que tava, sim. Uma pena. — o porteiro apontou para o pescoço e fez uma expressão de profunda tristeza. Ela, que por si só, também era uma doença

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Pedro Bomfim

Morto por dentro, nada mais do que um fantasma de comentários pungentes.